Outra irmã, outra opinião

A outra irmã, espetáculo do grupo Teatro de Apartamento que encerrou temporada no último domingo na Casa Cuíra, chama a atenção por se oferecer como uma peça que, se não é exatamente policial, ao menos bebe diretamente da fonte de narrativas policiais clássicas como as de Agatha Christie. Essa aproximação não é proposta apenas nos easter eggs oferecidos ao longo do texto e na cenografia e figurino realistas, que ostentam a atmosfera de uma mansão de verão de uma família burguesa da Inglaterra de meados do século XX, bem ao gosto daqueles autores. Para mim, um admirador dessas narrativas, o detalhe mais sedutor do espetáculo de Saulo Sisnando são os dados geográficos evocados pelos personagens, como as referências ao prado, à praia e ao bosque, bem como à fauna local, e aos hábitos típicos das classes abastadas, como a caçada, os banhos de praia e a leitura de revistas de celebridades. Esse ambiente natural e social, que emana fortemente de obras como “O caso dos dez negrinhos” e “A mansão Hollow”, sempre me pareceu o cenário ideal para um crime bárbaro e premeditado; há algo de saboroso em ver fustigada pela morte a hipocrisia e a mediocridade de ricos que falam inglês. Permitir que a gente recorde e fale sobre isso na cena artística de Belém já torna a peça muito legal. Mas a herança também tem sua maldição; é o aspecto pelo qual se denunciam problemas do espetáculo.

Talvez o aspecto mais fascinante do gênero policial esteja no triunfo da razão e da lógica sobre o oculto. Quando os detetives encontram, ou o narrador apresenta, uma ou mais soluções racionais perfeitas, mesmo para problemas que parecem francamente inexplicáveis ou assustadoramente sobrenaturais, transmite-se no fundo a ideia de que a mente humana, para o bem ou para o mal, é capaz de alcançar esferas além das impostas pela natureza e pelo cotidiano ordinário, para além das circunstâncias obscuras e das coisas não sabidas inerentes ao funcionamento do mundo. Embora a aparente existência de forças fantásticas ou obscuras seja muitas vezes usada para gerar tensão na narrativa desse gênero, é praticamente uma regra dele que não se recorra a essas mesmas forças para deslindar os mistérios, sob pena de se tornar a razão uma faculdade, senão inútil, ao menos secundária. Nesse contexto, o que A outra irmã nos oferece não é uma dramaturgia policial pura, mas uma trama mista, em que o percurso da linha fatal que leva à síntese entre os envolvidos no crime é intermediado por encantamentos, visões espectrais e intervenção de fantasmas habitantes de outra dimensão. Não julgo que isso ocorra por ingenuidade estética de Saulo Sisnando; pelo contrário, acredito ser o espetáculo uma representação muito genuína da diversidade de referências e paixões do autor, em quem o interesse por mentes criminosas parece ser tão grande quanto a paixão por magia e assombrações.

A pergunta passa a ser, assim, o que resulta esteticamente desse hibridismo intencional, e é aí que A outra irmã tem sua principal fragilidade. Ao invés de ressaltar a engenhosidade do plano urdido pelas protagonistas, a dimensão sobrenatural que compõe a narrativa contribui para uma infantilização dela, uma vez que nem os recursos cênicos do espetáculo são suficientes para causar uma impressão psicológica, nem a interpretação do elenco aponta para isso, sendo o tratamento cômico dos conflitos o que prepondera quase o tempo todo, com algumas cenas quase virando esquetes de televisão. É como se o fantasmagórico e o risível, somados, sugassem toda a atenção para si, em detrimento do prazer catártico pela procura que é propriedade latente da obra de mistério. Arriscando, é possível mesmo dizer que essa escolha do espetáculo é na verdade sua condição de viabilidade, pois parece vir em proporção inversa do rigor dramatúrgico acerca dos detalhes da trama: não são poucos os furos ou circunstâncias mal explicadas enumeráveis em torno dela. Uma obra policial não pode se permitir a falhas na lógica que a fundamenta; A outra irmã, não podendo superar esse problema, opta por minimizá-lo por meio da atração constante da plateia às gargalhadas. Desse ponto de vista, a interpretação de Leonardo Moraes, que vem recebendo elogios pelo vigor com que o ator se traveste e personifica os papéis femininos, revela-se como mais um elemento de desequilíbrio, uma vez que a pouca naturalidade transmitida pelo ator ressalta constantemente o fato de estarmos diante de um homem travestido, e esse ícone ser, ao menos em nossa cultura, eminentemente bufônico, carnavalescamente subversivo.

Quase carnavalesco é também o ritmo que marca os diálogos do espetáculo, com as falas dos atores sucedendo-se freneticamente, em uma intensidade muito alta que, com poucas exceções, não se encaixa no ambiente intimista escolhido para a encenação. É um estilo de teatro muito visto em Belém: a energia pela energia, o ritmo pelo ritmo, como se qualquer interrupção maior fosse um problema. É um mau trato com os atores, que reproduzem a paranoia, e um preconceito com a plateia, vista como incapaz de acompanhar as nuances de uma história. Para uma trama como a de A outra irmã, em que a grande quantidade de informação é necessária para o entendimento, o problema é ainda maior: sem tempo para respirar, fica difícil assimilar completamente a relação e as motivações entre os personagens, e a solução final é mais aceita do que apreciada. É mais uma lição dada pelas grandes obras de mistério que passa em branco: a de que o silêncio, os sussurros, as ausências e as entrelinhas são tão importantes quanto as palavras que se diz. Existirá outra forma de fazer teatro?

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