Saindo do cortiço (e da bolha)

O cortiço, montagem do Studio de Artes Tiago de Pinho, é uma obra capaz de abrir uma incômoda lacuna na percepção de quem deseja no teatro um pacto para exploração das contradições e da profundidade da alma humana, e não um espaço de reprodução de padrões impostos pela mídia de massa, que facilitam ao máximo as leituras para minimizar o impacto duradouro que a arte tem em potencial. Isso porque a adaptação teatral do romance de Aluísio Azevedo não parece se adequar a nenhum molde de princípios com que se tente interpretá-la. Fui ontem ao Margarida Schivazappa na expectativa de assistir uma peça rasteiramente comercial, em que atores iniciantes fossem usados como instrumentos vazios de repetição do senso comum, maquiado por um derrame gratuito de técnica que tornasse a cena atrativa a olhos afeiçoados ao imediatismo. Mas mesmo assim fui; e eis que, ainda que uma parte do Cortiço seja isso mesmo, e da forma mais deslavada possível, outra parte é uma obra atenciosa ao jogo, com quadros de humor original, enredos desenvolvidos com compromisso, atores com técnica apurada a serviço do mergulho dramático em seus personagens. Dentre as poucas certezas com que saí do teatro, estava certamente a de ter sido provocado para fora da bolha de minhas próprias convicções artísticas. Sem abandoná-las, mas pensando nas possibilidades e nos limites da coexistência delas com outras.

A presença de Bertoleza, que é marcante do início e do final do espetáculo, é um bom primeiro exemplo dessa dubiedade. A simplicidade da luz que a ilumina em ambas as aparições, o ritmo lento da sua ação, tudo é uma sutil e sensível provocação para um olhar cuidadoso do espectador, que, mais do que uma escrava estereotipada, vê uma mulher com uma história, um discurso e um conflito interno complexos. Da mesma forma leio a semelhança proposital entre o início da primeira cena, que abre a peça, e da última cena da escrava, depois que a maior parte dos moradores do cortiço já encontrou seu fim; a repetição da entrada da atriz rumo ao foco de luz, a executar tarefas domésticas com uma energia contida, é uma forma inteligente de mostrar que, no universo naturalista da peça, nada de fato muda; todos os dramas pessoais são resolvidos da forma que se divisava desde o início pela conjunção de horrores presentes no cortiço, e todas as lições mostradas e aprendidas pelos personagens são vãs. Mas é Bertoleza também quem ilustra a fragilidade de certas opções do espetáculo; por que a escrava precisa, por exemplo, simular a incorporação de uma entidade durante a primeira cena? Além de nada acrescentar ao discurso da encenação, essa e outras ações rendem a personagem justamente ao estereótipo que o cuidado da construção da cena vinha tentando evitar, e é o que faz o público reagir com indiferença, ou mesmo riso, quando ela encontra seu trágico desfecho. Vejo uma consequência semelhante na coreografia que serve de intermédio ao espetáculo, que representa o sofrimento dos escravos e sua luta pela libertação. O apuro técnico dos bailarinos não é suficiente para que a dança encontre coerência no discurso do espetáculo, ficando relegada a uma alegoria, uma forma já usada muitas vezes para contar a mesma história, cujo discurso político tem impacto imediato, porém efêmero.

Outros momentos da peça me lançaram da mesma forma a essa mistura de sensações. A primeira cena situada no cortiço, baseada em um longo diálogo entre as lavadeiras, as prostitutas e outros moradores, mostra um jogo cênico preciso e várias formas cômicas originais e divertidas, presentes não só no diálogo, mas também nos corpos dos atores e nas ações executadas; mas essa mesma cena também repete estereótipos e requenta piadas de outros contextos, o que naturalmente arranca risos, mas atrofia a admiração. Por que, para citar outro exemplo, acontecer uma festa de samba no cortiço, senão para ilustrar algum subtexto superficial sobre o “jeito” brasileiro, sobre a persistência da alegria em meio ao caos? Em suma, a encenação do Cortiço parece querer caminhar do início ao fim para uma potência da simplicidade, do detalhe e do jogo, mas a grandiloquência e a reprodução, que pressionam por todos os lados, acabam por dominar o palco e não permitir que essa proposta se desenvolva.

Outros contrastes evidentes entre as caracterizações dos moradores do Cortiço também ajudam a ilustrar essas contradições. Enquanto alguns têm destaque meramente formal, com uma extensa participação que não se traduz em conteúdo dramático, que não explora camadas humanas potenciais, outros queimam com uma chama mista de força e cuidado tão intensa que remetem aos grandes personagens do teatro. Rita Baiana é o melhor exemplo do primeiro tipo: todas as primeiras aparições da personagem são para reforçar sua sensualidade e sua conduta de mulher fatal, para logo depois, no momento da morte de Firmo, irromper sem mais nem menos em um arroubo emocional que soa gratuito. Albino e Piedade, por outro lado, são exemplos de personagens que recebem destaque não apenas formal, mas também de conteúdo. Suas histórias são contadas com delicadeza, sem se restringirem a excessos cômicos ou melodramáticos, e seus medos, seus traumas e os motivos de fundo de seus comportamentos são revelados aos poucos, por meio de um texto de rara qualidade, no caso de Albino, na cena em que conquista o desejo de Bruno, ou de um cruzamento primoroso entre ação e música, no caso de Piedade, que cede ao desvario do álcool e do sexo ao som de “Explode Coração” de Gonzaguinha. Talvez por isso mesmo, sejam esses os personagens que recebem de seus intérpretes Bruce Larrat e Isabela Arouck o investimento visivelmente mais orgânico, bonito e verdadeiro entre o enorme elenco do espetáculo.

Tiago de Pinho e seus atores parecem, portanto, ser capazes de ir com muita propriedade de um extremo a outro do contínuo entre as falsas pompas da arte comercial melodramática e as verdades misteriosas da arte que está sempre a se redescobrir. Fica a pergunta: o que estará montando essa galera daqui a uns anos? Podem se render ao blockbuster teatral, e virar mais alguns entre tantos outros artistas de mesmices (talvez só com melhor técnica), o que sem dúvida vai continuar lotando teatros, mas sem revolucionar nada, sendo lembrado por poucos. Podem também investir nas novas formas de dizer e fazer cujo caminho demonstram conhecer, e investigar como aliá-las ao apelo comercial que uma boa produção pede, verificando os impactos na plateia, em suma, abrindo-se para o inaudito, o surpreendente, o arriscado. Podem ainda, quem sabe, manter esses princípios ecléticos em todas as produções, tendendo ora a um, ora a outro extremo do contínuo, o que vai caracterizar uma linguagem sem dúvida original, mas cujo prazo de validade talvez não seja tão longo. Não sei o que escolherão. Mas, diferente de outras provocações que já fiz neste blog, que perambulavam entre o capcioso e o retórico, estas são projeções sinceras, de um espectador empolgado que pretende acompanhar os próximos trabalhos do Studio e de seus alunos. Porque o evoé não pode se restringir à nossa bolha.

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