A gota d’água para o coração transbordar (de quê?): memorial sobre o teatro como forma disparadora de recordações

“Deixa em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa…”, é o que diz a metáfora da canção, emulando o eu-lírico em sofrimento amoroso, herdeiro das cantigas galegas de amor, a imputar à amada o duplo poder de sedução e tirania. Discurso, aliás, recorrente na música popular brasileira, até hoje muito dada a romantismos transmutados em vassalagem. Mas, do medievo provençal ao pop atual, o personagem sofredor é pura licença; excetuando estados patológicos, nem só de mágoa se enche um coração. Na verdade, nada se constitui de apenas uma coisa, sendo as experiências mais comuns uma mistura de prazer e medo, solidão e liberdade, rancor e ironia. Talvez a expressão mais adequada dessa duplicidade humana se encontre em outra obra do cancioneiro nacional, um poema de Ferreira Gullar que Raimundo Fagner musicou: “uma parte de mim pesa e pondera, outra parte delira… uma parte de mim almoça e janta, outra parte se espanta…” [1]. Por sinal, uma poesia/canção que propõe uma pergunta-chave para a compreensão da vida, de modo geral, e do ofício do artista, em particular: “traduzir-se uma parte na outra parte, que é uma questão de vida ou morte; será arte?”. Eu creio que sim: uma tradução misteriosa e vital, em que forma e conteúdo se fundem, gerando fluxos de sentidos e leituras inauditos. E que curioso notar que uma mensagem pode se revolver diferentemente a olhos e corações diferentes, que belo notar que um discurso que pende na aparência a uma parte pode traduzir-se na outra parte; entra em cena o leitor, esse outro personagem, que molda à sua maneira o poema, a canção ou o espetáculo, a partir de seu lugar e sua história no mundo. Em outras palavras, como diz Annie Rouxel em algum lugar, “são os ecos entre certos aspectos (às vezes secundários, às vezes ínfimos) da obra (…) e a realidade de sua vida cotidiana que dão valor à sua leitura. Muitas vezes trata-se de um encontro casual, de uma coincidência, mas isso é suficiente para dar sentido à leitura e à vida”.

Eu poderia tentar falar de Gota d’água: a voz que me resta naquele tipo de frase padronizada que a gente acha que a crítica pede: é um espetáculo resultante de disciplina de Prática de Montagem de turmas dos cursos técnicos da Escola de Teatro, com duas horas de duração, dirigido por Paulo Santana e Marluce Oliveira… ora, mas para quê insistir nesse enquadre racionalizante, que dá a impressão de se estar jogando cartas com a obra, análise fria que parte de categorias supostamente bem definidas ante o real? Se não é a partir disso, e sim pelo caminho da divagação com que abri este texto, que apreendo o espetáculo? Não é por seus significados no plano da encenação que o belíssimo e consagrado texto de Chico Buarque e Paulo Pontes, o formato do palco em corredor, a qualidade das interpretações mais ou menos convincente, pautam minha leitura. Esses aspectos ressoam em mim, recuperam memórias arquivadas, desatam nós subconscientes e, por meio de seus aspectos “às vezes secundários, às vezes ínfimos”, me transportam dali para um outro tempo e lugar; mais exatamente, para a passagem do ano de 2012 para 2013, quando participei eu mesmo de uma Prática de Montagem, o primeiro espetáculo importante no qual estive.

Eram os já citados Paulo e Marluce que, na época, estavam incumbidos de levar a cabo o espetáculo. E é como se eu pudesse ver diante de mim os dois, ele com sua energia comburente, quase grosseira, rodeando a ação como urubu faminto, sempre a pedir mais e mais dos atores até a exaustão; ela, com seus olhos atentos e certeiros, deixando a cena correr livre, mas aproveitando oportunidades mínimas para se aproximar e, em poucas palavras, ajustar o rumo da interpretação ou da movimentação. Vejo o Paulo na sala de ensaios, ao redor das atrizes que tentam conter uma alucinada Joana em sua primeira explosão de ódio, gritando por mais vigor dos corpos, clamando pelo peso e pela urgência das vozes; vejo a Marluce, no outro extremo do palco, orientando os diálogos entre Creonte e Jasão, procurando o grau certo do cinismo de um e de outro. E me lembro de quando ensaiávamos Um certo faroeste caboclo em 2013, do João do Santo Cristo sendo seduzido pela prostituta Madalena, ou sendo estuprado na prisão, enquanto Paulo pedia realismo até às raias do exagero nos toques eróticos, na interação violenta; e Marluce discretamente observando as cenas entre João e Maria Lúcia, pedindo para ser mostrado o amor que eles declaravam nas falas. Que experiência ser dirigido por esses dois! A gente sofria sem deixar de se divertir, aprendia mais sobre nós mesmos sem perder o contato e o cuidado com o outro. Traduzir-se uma parte na outra parte

Passa por mim uma jovem atriz do jovem elenco, aliás, um dos mais jovens que já vi em cena (éramos tão jovens assim em 2013, meu Deus?). Não sei se são seus gestos coreográficos lançados em direção ao público, ou seu cabelo tingido de vermelho vivo, ou simplesmente sua aparência longilínea, que me afogam de novo em meio ao numeroso elenco feminino de Um certo faroeste caboclo, e sorrio pensando no tempo que devemos ter gastado a cortejar uns aos outros, seja no camarim antes das apresentações, seja nas saídas depois delas. O perigo iminente de se apaixonar, a irresponsabilidade e a inconsequência contrastando com a vaidade, a sensação de brilho, a celebração de nosso primeiro espetáculo “sério”, nosso primeiro “sucesso”. Traduzir-se uma parte na outra parte…

E claro que era o Zé Maria no violão. O mesmo Zé que conheci em 2012, passando de voz em voz com aquela primeira canção composta para o espetáculo… como era mesmo? Estou indo, encanto meu… já vou tarde, encontrar alguém… vou tão cedo pra quem não tem a resposta pro que perdeu… ele gostou das nossas vozes. Sempre nos chamava para aperfeiçoar nossos solos, em que eu compartilhava meu corpo, a Roseany Karimme carregava a carne dura de rachar sobre a sandália de plástico, a Isadora ou a Thainá sentiam o vento entrando calmamente. Tudo sob os olhares admirados dos ouvintes. E agora venho assistir Gota d’água e me surpreendo ao ver como ficou bonito essa turma toda cantando a Rosa dos ventos, a Flor da idade, o ponto de Oxóssi. Quem canta bem são eles! O Estou indo, encanto meu parecia tão bonito, e hoje parece tão bobo, sem deixar de parecer bonito… Traduzir-se uma parte na outra parte…

E sigo acompanhando Gota d’água. Os personagens vai desfilando diante de mim, e não deixo de rir diante das interpretações mais tolas. São os gestos desconcertados do aspirante a galã, o andar trôpego fingido do bêbado, a vizinha que toda hora pede da plateia uma ajuda que nunca temos chance de dar. Mas meu riso não é de troça; ele vem da lembrança das tolices que também fizemos nas temporadas do Faroeste. Como não rir daquele dramalhão gratuito do reencontro de João e Maria Lúcia? E o esforço vão pra mostrar a dor e o sangue que não havia na cena final? Isso para não falar das músicas que “esquecemos” de coreografar, pondo-nos a interagir a esmo… mas eu me acostumava também a fingir que nada daquilo acontecia, e aproveitar ao máximo os momentos nos quais eu me sentia dando tudo de mim, unindo com método a ação física e a vocal, sendo artista. E, naturalmente, Gota d’água também traz esses momentos, como Creonte a despejar seus preconceitos em forma de análise sociológica, ou Joana e Jasão confrontando suas subjetividades na arena doméstica. Eu me vejo neles, fazendo novamente a cena do retorno de João após a temporada na prisão, esmagando o camburão com a fúria do destemor; levando uma vez mais o dinheiro roubado da igreja para a mãe comprar carne, e enfrentando a vergonha encurralada dela. Duas cenas pelas quais meus colegas me aplaudiram tanto… deixando por menos as banalidades dos intermédios, afinal, todo mundo tinha uma parte opaca e outra parte brilhante. Traduzir-se uma parte na outra parte…

Foram essas mirações que embalaram meu transe diante do espetáculo. Peço desculpas se parece que não o assisti de fato; certamente meus leitores mais assíduos não reconhecerão nesse texto a exegese que costumo fazer das coisas que assisto. É provável que esta crítica não permita à equipe de Gota d’água pensar sobre todo o investimento que puseram na obra. Mas espero que reconheçam aqui um espectador tocado por ela, mesmo que desse jeito “atônito, ainda que tarde”… Esse memorial afetivo não seria possível sem o trabalho de vocês. Só me resta pedir: não deixem em paz meu coração! Ele é um pote até aqui de muitas coisas… e sempre pode ser que alguma delas esteja esperando, precisando, pedindo, uma gota d’água para transbordar.

 

[1] Devo à Dani Franco a lembrança dessa canção.

O tamanduá do Guamá

O título rimado que dou a essa postagem não é à toa. Afinal, foi uma gostosa sensação lúdica, realizada sobretudo por meio das palavras e dos jogos com elas, o que ficou em mim após assistir Cuidado com o tamanduá-bandeira, espetáculo realizado pela equipe de facilitadores, voluntários, crianças e jovens do Espaço Cultural Nossa Biblioteca. Sendo eu também um diretor de grupo de teatro com crianças/adolescentes, compreendo as limitações técnicas e os eventuais descompassos da encenação, e convoco a mim mesmo a um olhar generoso, despido de expectativas; sou, assim, levado a perceber que elementos do espetáculo me enlaçam com a dinâmica da vida infantil, independentemente de sua importância para o conjunto da obra. E, talvez por eu ser também um profissional apaixonado da área da linguagem, são os trocadilhos, as confusões, as surpresas, os exageros e as brincadeiras linguísticas que me fazem sonhar mais demoradamente.

Logo no início, a língua se mostra um elemento fundamental para o jogo cênico, quando um problema de compreensão de “usina atômica” gera um retardo no entendimento da mensagem do ministro, cuja urgência acentua o efeito cômico. Aqui, o que permite o humor é tanto a ordem sintática que conecta atômica como adjunto adnominal de usina quanto a construção morfológica de atômica, em que o inicial não é artigo, mas componente do radical da palavra, além do problema interacional de que o conceito de usina atômica obviamente não faz parte do repertório linguístico da rainha. A percepção da sagacidade da piada parece motivar até sua repetição, que ocorre no início do ato seguinte, dessa vez com “greve geral”; mas o efeito não é o mesmo, em parte, talvez, pela gratuidade da repetição, em parte pelo sintagma não compartilhar a mesma estrutura linguística anterior.

O título ostentado pelo ministro Adolfo é outro exemplo de jogo linguístico, dessa vez pelo exagero e pela combinação: o longuíssimo nome do cargo que ocupa, marcado por assonâncias, lembra os trava-línguas infantis, usados como desafios para testar a habilidade de articulação e raciocínio dos incautos, que normalmente se enrolam algumas vezes antes de finalmente conseguir dizer a frase, gerando muito riso e encarnação. Algo parecido ocorre na cena do casamento, em que é também longo e complicado o texto dito pela Cigarra, que dirige a cerimônia.

Falando na Cigarra, a própria presença dela é testemunha de outro procedimento que também põe a linguagem em primeiro plano: a intertextualidade. A conhecida fábula “A cigarra e a formiga” é o mote para o surgimento da personagem, porém com uma interessante releitura que lhe inverte o sentido: enquanto, na fábula, a cigarra era a representação simbólica da lassidão, da preguiça e da improdutividade, aqui ela aparece com grande destaque dado pelas próprias formigas, que admiram sua voz e sua performance.

É também pela voz da Cigarra que surge outra piada linguística, talvez a mais interessante do espetáculo, quando ela lamenta o falecimento de seu marido, o “cigarro”, que morreu queimado e do qual ela encontrou apenas a bagana. Aqui, a brincadeira com a palavra, em que o o final é vogal temática em uma e passa a desinência de gênero na outra, é outro recurso muito presente nas interações infantis, pelo qual as crianças ironizam, se esquivam de perguntas inconvenientes ou simplesmente brincam, descobrindo assim os padrões morfológicos da língua. No espetáculo, a ironia é ressaltada ainda pela estratégia de revelar aos olhos do público a própria bagana de cigarro esmagada, o que subverte ao máximo as imagens do signo linguístico e torna tudo ainda mais divertido. Imagino ainda o quanto uma piada aparentemente tão simples pode contribuir para a elaboração da defesa psicológica dessas crianças periféricas, em cujas realidades o uso de drogas, principalmente de álcool e de tabaco, é comum, e mesmo socialmente aceito, desde a adolescência…

Todas essas sedutoras brincadeiras de língua(gem) me permitem aproximar Cuidado com o tamanduá-bandeira de diversos autores da literatura infantil, como Sylvia Orthof, Eucanaã Ferraz e, em especial, José Paulo Paes, cuja obra (brilhantemente analisada por Ana Elvira Gebara no livro A poesia na escola) utiliza, dentre outros recursos, o intertexto, a comutação, as rimas e o absurdo como formas de seduzir o leitor infantil para a gratuidade e o prazer da poesia. É o que me parece mais promissor no espetáculo do ECNB, principalmente porque o enredo principal e suas possíveis leituras sociopolíticas não me parecem muito consistentes, a começar pela estranheza de discutir eleições e representatividade em um ambiente no qual os valores e hábitos da monarquia persistem do início ao fim, culminando inclusive com um casamento real (que pode ser lido até como a eterna conciliação dos oligarcas) ao qual o povo assiste bem passivamente.

Para finalizar, registro a alegria que foi ver o espetáculo sabendo que a direção geral foi da Alana Lima. Já faz algum tempo que construímos, ora mais, ora menos juntos, o sonho e a vontade de fazer arte com meninos e meninas da periferia, impactando as comunidades. O apoio, a rede de afetos que a Alana consegue para o seu trabalho, evidente no grande e diversificado público que compareceu ao Sesc Boulevard, é comovente. E mais ainda por ser um espetáculo no qual consigo, junto com as crianças do Guamá, alcançar a diversão em estado puro e voltar, eu mesmo, a ser criança.

O gênio de um desejo só

“Por que o Howard?”, foi a pergunta que me veio à cabeça quando vi o anúncio de um musical sobre Howard Ashman, uma dúvida intensificada pelo título do espetáculo, O Gênio dos Musicais, alcunha que para mim soava exageradamente espetacular, por vários motivos.

Primeiro, pelo fato, que o próprio musical ressalta, de que a carreira de Howard passou longe de ser uma permanente ascensão, uma brilhante unanimidade, como o título daria a entender. Foi, antes, um misto de sucessos e fracassos que, se alcançou em dado momento o estrelato, não foi apenas pela suposta “genialidade” do produtor e letrista americano, mas pela conjunção de vários fatores, como o contexto de derrocada dos estúdios Disney dos anos 80 e a visão de outros produtores, como Don Hahn e Jeffrey Katzemberg. A respeito desses fatores, aliás, é muito didático para nós, que não temos tradição de musicais biográficos, ver como o espetáculo de Guál Dídimo efetua com sucesso a maximização do primeiro, deixando bem clara a crise financeira da empresa na voz da personagem da produtora que mostra o estúdio a Howard, enquanto minimiza o segundo, ao não se preocupar em apresentar, nem mesmo mencionar, a maior parte dos demais produtores dos estúdios Disney responsáveis pelo sucesso de filmes como A Pequena Sereia e A Bela e a Fera. É uma operação precisa de dramaturgia que serve perfeitamente à delimitação de Ashman como o “gênio” maior por trás das animações, ainda que tal retrato seja questionável diante da história factual.

O segundo aspecto que me fazia problematizar a escolha era a evidência de que, pelo menos entre nós, brasileiros da classe média que assistiram os filmes à época do lançamento, a popularidade das animações nas quais Ashman trabalhou não se devia particularmente ao trabalho dele. Ora, a principal colaboração do autor nos filmes eram as letras das canções, e as cópias exibidas no cinema e inseridas nas fitas de vídeo que colecionávamos continham em geral a versão dublada em português dos filmes, nas quais as composições de Howard eram substituídas por versões cujo conteúdo (e qualidade) nem sempre correspondiam às originais. Basta lembrar do famoso caso de “Part of your world”, de A Pequena Sereia, em que um verso delicioso, cheio de assonâncias e rimas internas, como “wouldn’t I love, love to explore that shore above” virava o martelante “quero morar naquele mundo cheio de ar”, entre outras aberrações. Na prática, o fascínio exercido por filmes como esse no Brasil se deveu mais aos roteiros bem acabados, à evolução tecnológica das animações e, a meu ver, às melodias e trilhas sonoras, felizmente preservadas como as originais. Nesse ponto, o musical apresentado no Waldemar Henrique parece assumir a contradição, já que as músicas cantadas estão todas na versão em português; é como se a exaltação a Howard derivasse não de uma fruição atenta da obra, mas de uma ligação meio mistificada entre a imagem do compositor e a recepção das canções, ligação, porém, necessária para gerar no ouvinte um senso afetivo, ainda que difuso. Mas vivemos tempos de Facebook, no qual as curtidas e compartilhamentos precedem a leitura atenta, e o ritmo dinâmico e confortável do espetáculo nos faz prescindir de elucubrações desse tipo. De qualquer forma, me parecia esquisito, tanto eticamente quanto afetivamente, imputar a Ashman, de forma tão personalista, um destaque maior do que, por exemplo, o de Alan Menken, responsável pelas melodias e trilhas sonoras dos mesmos filmes, ou Tim Rice, cujo trabalho, por exemplo, em Aladdin, O Rei Leão e outras obras, se não superou, ao menos igualou os feitos de Howard. Por que, então, o Howard?

O espetáculo não demora a nos dar essa resposta, assentada principalmente na qualidade da construção dramatúrgica de Guál Dídimo, já apontada aqui na crítica ao espetáculo Paixão Fosca. Em O Gênio dos Musicais, diálogos ágeis e limpos apresentam desde o início e com clareza o tom do personagem de Howard, dividido entre ambições artísticas, traumas familiares e impulsos sexuais e afetivos. Assim, fica evidente que o protagonismo dado ao compositor no espetáculo não se deve apenas aos valores discutidos acima, mas principalmente às camadas psicológicas de sua biografia, que, melhor do que a de outros artistas, providencia ao espetáculo a densidade necessária a um dos pontos do discurso por ele mesmo defendido: um protesto contra o preconceito e a discriminação sofrida pelas pessoas homossexuais. Dessa perspectiva, é bonito o encontro com Cazuza e a composição de “Codinome Beija-Flor”, uma parte relativamente discreta da carreira de Howard, ganhar destaque no espetáculo; o que poderia ser visto como um apelo meio rasteiro a uma plateia brasileira necessitada de identificação torna-se um retrato simbólico da singularidade de dois artistas cujo comportamento sexual, e, em última instância, a própria identidade, foram marginalizados e estigmatizados pela AIDS.

Pela força de cenas como essa, é lamentável notar que outras ressonâncias da temática homoafetiva presentes na vida de Howard Ashman são retratadas sem contundência, ou mesmo sistematicamente ignoradas, pelo espetáculo. Uma delas, já notada pelo Hudson Andrade, em crítica publicada na Tribuna do Cretino, é o relacionamento entre Howard e Fred, o namorado-marido que o acompanha até o estrelato. Apresentada em um diálogo cheio de um duplo sentido muito interessante, a relação entre os dois promete, no início, acender uma chama de realismo na peça, levando para os corpos a reação contra o preconceito. Mas é uma expectativa frustrada: o namoro vai sendo retratado com pudor excessivo, disfarçando por um contato físico estéril a fuga de qualquer insinuação mais íntima. Parece, assim, mais um testemunho de covardia, incompreensível diante do fato de que o teatro paraense já teve inúmeros espetáculos pautados na afirmação explícita da homossexualidade, e de que mesmo a cultura de massa já vem há anos permeabilizando-se a esse debate.

Ainda sobre o mesmo tema, outros detalhes poderiam se juntar à análise iniciada pelo Hudson: o Howard do Gênio dos Musicais frequenta as sociais de madames racistas e homofóbicas, retratadas caricaturalmente na tentativa de apontar o absurdo de seu discurso; mas nada se fala sobre as festas gays de Nova York, que o Howard real notoriamente frequentava e se realizava artística e sexualmente (a inspiração da vilã de A Pequena Sereia em uma famosa drag queen americana, por exemplo, é apagada). A epidemia de AIDS da passagem dos anos 80 para os 90, que produziu o discurso do “câncer gay” e fez o Howard real acompanhar dolorosamente a morte de vários amigos, até ser ele mesmo vitimado, é quase apagada da dramaturgia, que dá a impressão de que Ashman era um caso isolado de HIV positivo, e não se mostra o discurso explícito feito por seu companheiro pelo respeito e amparo aos portadores da doença, quando do recebimento póstumo de seu segundo Oscar. O Howard personagem, enfim, se reconcilia com a mãe na última cena, como se o espetáculo supusesse ou propusesse a superação da discriminação contra os gays; me parece um estilo excessivamente ingênuo de exigir legitimidade, especialmente no atual contexto político brasileiro, em que pautas identitárias, longe de serem consensuais, são os principais epicentros de discursos de ódio. Um Howard que vivesse no mainstream midiático de hoje talvez permanecesse com pouca liberdade para manifestar sua orientação sexual.

Para concluir: da mesma forma que, em Paixão Fosca, Guál Dídimo atingia uma arte excelente quando investia nas opções cênicas mais tradicionais, nos diálogos clássicos e na direção de ator, no Gênio dos Musicais é também nas formas mais conservadoras de construção que ele tem seu mérito. Contudo, ao contrário de Paixão Fosca, que era um drama com pouco teor sociológico, o tributo a Howard Ashman se imiscui em temas que já ganharam teor político, e, por isso, os limites do conservadorismo cênico ficam mais evidentes, um ponto no qual outros espetáculos da cidade, como I(Mundo) Ubu, já estão mais avançados. Toda a tessitura da ideia romântica do “sonho” de Howard Ashman é feita com maestria pelo diretor, e o melhor exemplo é a inserção da canção do filme Cinderella, um recurso que ao mesmo tempo inaugura dramaturgicamente a entrada de Ashman nos Estúdios Disney e se encaixa no desdobramento psicológico do personagem. Porém, essa dificuldade de tematizar os pontos mais “sérios” que se insinuam acabam tornando O Gênio dos Musicais um espetáculo de interpretações corretas, vozes consistentes, coreografias alegres, enfim, de ótimo entretenimento, mas de ideologia confusa, manifestos envergonhados, provocações natimortas. Um gênio que promete muitos desejos, mas acaba cumprindo só um.

Joel

O Joel sempre foi um rapaz de raciocínios rápidos, ideias criativas e, sobretudo, uma autoestima desconcertante. Lembro nitidamente que, ao convidá-lo para compor o elenco do primeiro espetáculo do grupo de teatro que temos até hoje na escola, ele, do alto de seus 10 ou 11 anos, pulou aquele “sim” que o script das conversações adultas mascaradas me fazia esperar e tacou-me um imediato “posso ser o Mané?”, referindo-se ao personagem que seria o protagonista da peça. Pois o Joel não apenas foi o Mané, arrancando elogios da plateia, como tem se tornado desde então o membro mais fiel do grupo, sempre colaborando para reverberar as minhas direções, contribuindo para a integração dos membros e assumindo desafios dos mais prosaicos, como fazer par romântico com uma colega diante da escola toda, aos mais improváveis, como apresentar junto comigo uma comunicação oral em evento acadêmico na Escola de Teatro e Dança da UFPA.

É inegável, portanto, que o Joel se engaja visceralmente em minhas ideias sobre teatro, que envolvem, entre outras coisas, uma atenção especial às palavras e aos silêncios do diálogo, uma busca pela ousadia criativa e pelo aprofundamento psicológico. Mas é enganoso pensar que o Joel vá adotar aquela visão de arte em todas as situações de sua vida. Ele continua consumindo produtos de entretenimento de televisão e de internet, em que a narrativa é padronizada, em que quase sempre se toma o espectador como uma tábula rasa de sensações, em que roteiros, cortes e trilhas sonoras são feitos sob medida para provocar esta ou aquela reação. Daí se explica que algumas vezes o Joel traga para os processos do nosso grupo ideias que têm dificuldade de se encaixar nas minhas: piadas chupadas de humorísticos televisivos, explicações monológicas de fatos dramatúrgicos, inserção de efeitos cênicos reforçadores de suspense. O caso mais emblemático foi quando ele sugeriu com insistência que uma trilha sonora da série The Walking Dead fosse reproduzida ao final de nosso espetáculo mais recente; segundo ele, a música reforçaria a expectativa do público sobre o destino da personagem que encerrava a peça. Toda a minha argumentação de que essa expectativa não era tão importante, de que o final era daquele jeito por outros motivos, não pareceu convencê-lo: até hoje ele acredita na qualidade da ideia…

Conviver com o Joel, portanto, é uma experiência ao mesmo tempo de felicidade e de perplexidade, pois os potenciais e os limites de minhas convicções estão ali, cruzando-se e questionando-se mutuamente. Fazer teatro com aqueles jovens da periferia acaba se revelando como uma guerrilha estética, em que há um paradoxo constante entre a busca de uma gestão democrática dos trabalhos do grupo e os choques entre os diversos discursos e subjetividades envolvidas no processo, em que se atravessa a voz do Outro inconsciente da psicanálise. Formulam-se, assim, muitas questões particularmente complicadas, e talvez insolúveis: como impor parâmetros estéticos sem maltratar as propostas legítimas dos atores? Como manter para eles a experiência prazerosa de fazer teatro sem torná-la mera reprodução do que já conhecem? Como convencê-los da necessidade de se atentar para o discurso sociopolítico de uma peça se a comunicação de massa os ensina a prescindir disso? É possível fazer teatro com jovens e para jovens sem precisar aderir à estética de massa?

O Gato de Botas, espetáculo da Cia. de Teatro Corifeus, apresentado no último sábado no Casarão do Boneco dentro da programação do Amostraí, me fez lembrar do Joel e de todos esses problemas da minha relação com ele. Foi, a princípio, desconcertante para minhas convicções sobre teatro verificar a reprodução de modelos massificados ocupando integralmente a encenação. Os figurinos, emprestados das concepções visuais mais conhecidas de contos de fadas, buscando reproduzir as distinções sociais típicas da temporalidade medieval do gênero, pareciam uma escolha temerária diante dos poucos recursos disponíveis para a confecção; alguns trajes resultavam mais bem acabados do que outros, comprometendo o conjunto visual. Em contraste, a concepção simples e moderna do visual da bruxa, cuja obscuridade vinha de um maquiavelismo juvenil e não dos figurinos, maquiagens e trejeitos tradicionais, parecia indicar um caminho bem mais promissor para a peça, se tivesse sido tomado para todos os personagens.

A panada azul com entradas que compunha a cenografia custou a se justificar a meus olhos, principalmente em se tratando de uma apresentação no Casarão do Boneco, cuja imponente vegetação do quintal provavelmente serviria muito bem ao cenário natural do espetáculo, evidente na cena de abertura, e ao clima aristocrático das demais cenas. As trilhas sonoras épicas de temas medievais ao fundo e as composições corporais e vocais dos atores sustentadas em aspectos formais, sem organicidade (impossível não se constranger com a caminhada saltitante das camponesas ou com a voz artificialmente alteada do Gato) e, principalmente, o problema discursivo de estereotipar personagens de acordo com ideias dominantes e preconceituosas (o criado como a pessoa com deficiência, a princesa como a jovem branca e loira), completaram o que foi, para mim, francamente angustiante de acompanhar, apesar do tempo curto de apresentação.

Mas é aí que volto ao Joel, o ator mais fiel do meu grupo, um jovem periférico como os que atuavam em O Gato de Botas e que provavelmente não veria, como a equipe de O Gato de Botas também parece não ver, nenhum desses problemas que elenquei acima. Mesmo com a certeza que tenho a respeito de minha visão de teatro, de sua potencialidade artística, de sua coerência histórica e filosófica, sou forçado a considerar também que outras visões, cunhadas em outras tradições, existem, estão aí, e não serão substituídas pela minha. A experiência me faz relutar em afirmar minha concepção como absoluta, um autoritarismo que ainda respinga de certas análises marxistas da arte. Prefiro antes defender que uma obra de padrão massificado ou uma experimental não têm valor por si, mas sim de acordo com o bom acabamento dos elementos no interior de suas propostas, formando um contínuo horizontal e múltiplo, e não vertical e estanque. Por esse motivo fiz os comentários acima, tentando compreender a obra dentro de sua linguagem, e quem sabe contribuir com o desenvolvimento dela. O Joel, assim como a equipe de O Gato de Botas, têm o direito de realizar suas formas e seus desejos de fazer arte, e nem precisam necessariamente conhecer as outras possibilidades existentes. Tenho a impressão de que, seja qual for o caminho escolhido, o que importa, no final, é estar disposto a uma interlocução democrática, como deduzo, das falas ao final do espetáculo, que a Cia. Corifeus parece estar. E como, enfim, espero que o Joel também esteja aprendendo a estar.

Minha amiga chuva

Chovia muito no dia três de fevereiro. Não era dia de sair de casa. Quem se arriscou sentiu a potência da tempestade. Na Casa dos Palhaços, o telhado metálico recebia a inclemência das gotas que o golpeavam torrencialmente, tornando ruidoso o espaço da caixa preta onde Meu amigo inglês começava naquele instante. O palco simples, o ambiente intimista e a cenografia leve me faziam temer que os atores não conseguissem se sobrepor à força da natureza. Não sei se essa falta de confiança inicial prejudicou minha fruição da peça. O caso é que a chuva aliviou depois de alguns minutos, mas os atores não me pareceram substituí-la com o mesmo vigor.

Acompanhei com interesse o desenrolar de um dia na vida de Teodoro, palhaço de circo que sofre do mal de Parkinson. A doença, apesar de não o impedir de se apresentar no picadeiro, torna-o cada vez mais dependente do auxílio da esposa e parceira de apresentações, Madalena, o que abala sua autoestima e o faz pensar em se aposentar. Meu olhar para essa fragilidade quase infantil da figura de Teodoro não deixava de ter uma certa curiosidade: tenho um caso da doença na família, em um parente do sexo feminino, e sempre o observei com uma atitude muito positiva e uma postura muito independente diante da doença, o que me fazia querer investigar a alma daquele palhaço para desvendar a natureza de seu comportamento. O texto contribuía para me provocar: o afeto entre o casal, entremeado pela sombra do ciúme e pelo medo do amanhã, me era mostrado com delicadeza, longe do melodrama, porém deixando que se insinuasse por vezes a carga emocional que, eu esperava, encontraria uma síntese dali a pouco.

Mas, ao mesmo tempo, algo me dizia que esse desejo não seria correspondido. A cada fala dos atores e a cada movimento deles em cena, eu sentia um peso da marcação, da dicção e da impostação que não me deixava ver com naturalidade aquele casal. Me senti quase o tempo inteiro em alguma etapa intermediária do processo, em que se estivesse buscando a decupagem do texto ou a compreensão do fio dramatúrgico, para posterior procura da organicidade da presença cênica do elenco, que eu procurava em vão. Acentuava esse desconforto minha dificuldade em ver sintonia entre a proposta de espaço cenográfico e a atuação. A unidade de lugar proposta era um trailer em que os palhaços viviam, uma residência de metal cujo desconforto e instabilidade me pareciam uma poderosa metáfora às sensações experimentadas por Teodoro, de estar preso dentro da própria pele, e por Madalena, de estar melancolicamente ligada a ele. Eu esperava, assim, atuações abafadas, cinzentas, coerentes com a casa de metal. Mas não era o que eu via; o espaço parecia dar liberdade demais aos corpos, que podiam transitar entre dois ambientes do palco. Romana Melo chegou a girar euforicamente em cena! A proposta era, no mínimo, indecisa. Talvez por isso mesmo eu veja como as cenas mais interessantes da peça os momentos em que o casal se transporta para o picadeiro, quando o simples recurso de subir nos bancos é suficiente para os atores transmitirem a amplitude e a magnitude próprias desse outro espaço.

Meu amigo inglês terminou e, embora houvesse um desfecho dramático no palco, meus descontentamentos com a obra me impediram de encontrar nele as respostas que eu queria. O que voltou ao primeiro plano foi ela, a chuva, que retornava com força ao fim do espetáculo e prendeu todos na Casa dos Palhaços por mais algum tempo, algo constrangidos, trocando poucas palavras sobre a peça. Pensando bem, talvez a chuva estivesse, desse jeito amedrontador que lhe é próprio, oferecendo-nos sua amizade e, quem sabe, algumas lições sobre vigor, resiliência e profundidade.

Manifesto do partido antifacebookista

Povo de Santa Maria de Belém do Grão-Pará! Cidadãos de Belcity! Usuários do sinal de NavegaPará da Biblioteca do Centur e todos os outros serviços internéticos estatais que não funcionam como deveriam!

Eu, Arthur Ribeiro Costa e Silva, um acidental filho de ditador que teima em não ser filhote da ditadura, na qualidade de crítico-blogueirinho-cretino-chato-do-contra-que-só-quer-falar-mal, conclamo a todos para abandonarem seus computadores, seus celulares e seus smartphones. Abandonem o Facebook, senhoras e senhores! Abandonem o Facebook!

Essa ferramenta, senhoras e senhores, que passou nos últimos anos por ascensão vertiginosa tanto na escala de importância cotidiana em nossas vidas quanto no ranking das empresas mais valiosas e poderosas do mundo – vocês se surpreenderiam em saber das relações entre esses dois crescimentos! –, essa ferramenta, repito, a despeito da oportunidade reluzente que nos oferece de registrar nossa vida e nossos gostos publicamente, de repercutir nosso pensamento em um aparente pé de igualdade com todas as outras instâncias geradoras de conteúdo do planeta, de receber feedbacks quase imediatos de um amplo grupo de pessoas que de outra maneira talvez sequer se lembrasse de nossa existência, essa ferramenta, repito, a despeito de tudo isso, vem nos ocupando com ilusões!

Sim, senhoras e senhores. E essas ilusões nos envolvem de tal forma que não percebemos toda a miríade de sustentáculos pelos quais o Facebook atua. Não percebemos, senhoras e senhores, que passamos boa parte de nosso dia ocupados com pautas que muito pouco interferem em nossa vida real. Não atentamos, senhoras e senhores, para o fato de que essas pautas se sucedem indefinidamente, movimentadas por algoritmos traiçoeiros que caçam atenção em forma de cliques e likes, e são substituídas dia a dia de modo a nunca nos deixar sem algo para debater, em um círculo vicioso muito semelhante ao modo de ação das drogas no sistema nervoso central. Não reconhecemos, senhoras e senhores, que somos por isso instados a aderir e refutar valores que não são os nossos, mas fabricados por outros, de modo que nosso repertório axiológico resulta difuso e contraditório. Não enxergamos, senhoras e senhores, que, com isso, não nos aproximamos, e sim nos distanciamos, de uma ação política prática pragmática praxiológica efetiva.

Não quero com isso dizer, senhoras e senhores, que todos vocês são insolúveis alienados, alegres títeres do poder, vaidosos inveterados. Não, senhoras e senhores. Quero, na verdade, fazer despertar em vocês toda a capacidade revolucionária que sei que cada um de vocês possui dentro de si. Quero, na verdade, mostrar que vocês são a base que sustenta e é explorada por um sistema que só pode existir justamente porque explora vocês, e que, por isso, precisa ser tomado das mãos dos proprietários dos meios de produção digitais e, por meio da ditadura do proletariado virtual, passar a ser gerido pelos detentores da força de trabalho online!

Mas as senhoras e os senhores provavelmente me perguntarão, confirmando sua inquestionável solidez intelectual, subaproveitada pelo uso constante do Facebook: por qual caminho devemos ir para recuperar nossa verve revolucionária? Que ferramenta podemos por no lugar da odiosa rede social para voltar a nos encontrar como indivíduos conscientes de seu alvo? Pois eu, senhoras e senhores, não lhes deixarei sem resposta, embora certamente não seja uma resposta simples, nem elementar, nem tampouco comum. A via de escape do Facebook, senhoras e senhores, é o TEATRO!

Sim, senhoras e senhores. Essa entidade mística, desafiadora de percepções, que consegue ser comercial e transcendental – muitas vezes ao mesmo tempo! – existe em nossa cidade, e – vocês se surpreenderão com isso, senhoras e senhores! – coloca peças em cartaz quase todos os finais de semana! Não falo das famigeradas peças experimentais, que vocês, senhoras e senhores, acostumaram-se a ver repercutidas no Facebook, principalmente por grupelhos de ideologia duvidosa, que fazem uma suposta crítica da degeneração cultural, que nada mais é do que mais uma ilusão das quais já os alertei. Falo, senhoras e senhores, de montagens referenciadas na cultura brasileira e mundial, com dramaturgias assinadas por nomes como Alfred Jarry, Ariano Suassuna, e até mesmo, senhoras e senhores, nosso ídolo da arte moderna Oswald de Andrade!

Agora mesmo ouço falar que está em cartaz, senhoras e senhores, uma peça cujo texto é de autoria de nosso tão amado e idolatrado Oswald, chamada O homem e o cavalo. Razão pela qual, senhoras e senhores, não perco tempo, e de imediato convoco todos a irem ao Teatro Claudio Barradas. Tenho certeza que perceberão imediatamente a grande diferença entre perder tempo e energia no Facebook e dedicar seu olhar para um espetáculo como esse. Certamente, senhoras e senhores, não encontrarão na peça uma miríade de imagens a se sucederem confusa e vertiginosamente, e sim um elo dramatúrgico e discursivo muito bem reconhecível e apreciável, diferente do que temos no Facebook. Com certeza notarão a diferença, senhoras e senhores, entre o tom monocordicamente inflamado e agressivo, que se tornou a regra para se expressar no Facebook, e o desenho cômico suave e surpreendente da encenação. Provavelmente não verão no espetáculo, senhoras e senhores, o debate político preguiçoso, rasteiro e desinformado que nos acostumamos a travar na rede social, pois é evidente que a peça propõe um olhar inovador sobre questões políticas, movimentando a melancólica imobilidade em que nos encontramos, presos a uma figura redentora messiânica que não é, na prática, diferente dos outros jogadores no tabuleiro do poder.

Lembrem-se apenas, senhoras e senhores, de que fazer é muito mais difícil do que criticar, e que, seja qual for a questão que se queira problematizar no espetáculo, o que importa é que o diretor decidiu mostrar daquela maneira. Portanto, não percam tempo, senhoras e senhores, com este expediente envenenado e infantil que é a crítica.

Tenho absoluta certeza de que, frequentando os teatros de nossa cidade e assistindo a peças como O homem e o cavalo, superaremos o maniqueísmo social ao qual as bolhas virtuais vêm nos relegando, apontaremos nossos dedos não mais para nosso próprio umbigo, mas para o grande inimigo que temos em comum, e, enfim, alcançaremos a síntese do processo dialético que constitui a luta de classes!

Avante, senhoras e senhores! Rumo ao socialismo!

Outra irmã, outra opinião

A outra irmã, espetáculo do grupo Teatro de Apartamento que encerrou temporada no último domingo na Casa Cuíra, chama a atenção por se oferecer como uma peça que, se não é exatamente policial, ao menos bebe diretamente da fonte de narrativas policiais clássicas como as de Agatha Christie. Essa aproximação não é proposta apenas nos easter eggs oferecidos ao longo do texto e na cenografia e figurino realistas, que ostentam a atmosfera de uma mansão de verão de uma família burguesa da Inglaterra de meados do século XX, bem ao gosto daqueles autores. Para mim, um admirador dessas narrativas, o detalhe mais sedutor do espetáculo de Saulo Sisnando são os dados geográficos evocados pelos personagens, como as referências ao prado, à praia e ao bosque, bem como à fauna local, e aos hábitos típicos das classes abastadas, como a caçada, os banhos de praia e a leitura de revistas de celebridades. Esse ambiente natural e social, que emana fortemente de obras como “O caso dos dez negrinhos” e “A mansão Hollow”, sempre me pareceu o cenário ideal para um crime bárbaro e premeditado; há algo de saboroso em ver fustigada pela morte a hipocrisia e a mediocridade de ricos que falam inglês. Permitir que a gente recorde e fale sobre isso na cena artística de Belém já torna a peça muito legal. Mas a herança também tem sua maldição; é o aspecto pelo qual se denunciam problemas do espetáculo.

Talvez o aspecto mais fascinante do gênero policial esteja no triunfo da razão e da lógica sobre o oculto. Quando os detetives encontram, ou o narrador apresenta, uma ou mais soluções racionais perfeitas, mesmo para problemas que parecem francamente inexplicáveis ou assustadoramente sobrenaturais, transmite-se no fundo a ideia de que a mente humana, para o bem ou para o mal, é capaz de alcançar esferas além das impostas pela natureza e pelo cotidiano ordinário, para além das circunstâncias obscuras e das coisas não sabidas inerentes ao funcionamento do mundo. Embora a aparente existência de forças fantásticas ou obscuras seja muitas vezes usada para gerar tensão na narrativa desse gênero, é praticamente uma regra dele que não se recorra a essas mesmas forças para deslindar os mistérios, sob pena de se tornar a razão uma faculdade, senão inútil, ao menos secundária. Nesse contexto, o que A outra irmã nos oferece não é uma dramaturgia policial pura, mas uma trama mista, em que o percurso da linha fatal que leva à síntese entre os envolvidos no crime é intermediado por encantamentos, visões espectrais e intervenção de fantasmas habitantes de outra dimensão. Não julgo que isso ocorra por ingenuidade estética de Saulo Sisnando; pelo contrário, acredito ser o espetáculo uma representação muito genuína da diversidade de referências e paixões do autor, em quem o interesse por mentes criminosas parece ser tão grande quanto a paixão por magia e assombrações.

A pergunta passa a ser, assim, o que resulta esteticamente desse hibridismo intencional, e é aí que A outra irmã tem sua principal fragilidade. Ao invés de ressaltar a engenhosidade do plano urdido pelas protagonistas, a dimensão sobrenatural que compõe a narrativa contribui para uma infantilização dela, uma vez que nem os recursos cênicos do espetáculo são suficientes para causar uma impressão psicológica, nem a interpretação do elenco aponta para isso, sendo o tratamento cômico dos conflitos o que prepondera quase o tempo todo, com algumas cenas quase virando esquetes de televisão. É como se o fantasmagórico e o risível, somados, sugassem toda a atenção para si, em detrimento do prazer catártico pela procura que é propriedade latente da obra de mistério. Arriscando, é possível mesmo dizer que essa escolha do espetáculo é na verdade sua condição de viabilidade, pois parece vir em proporção inversa do rigor dramatúrgico acerca dos detalhes da trama: não são poucos os furos ou circunstâncias mal explicadas enumeráveis em torno dela. Uma obra policial não pode se permitir a falhas na lógica que a fundamenta; A outra irmã, não podendo superar esse problema, opta por minimizá-lo por meio da atração constante da plateia às gargalhadas. Desse ponto de vista, a interpretação de Leonardo Moraes, que vem recebendo elogios pelo vigor com que o ator se traveste e personifica os papéis femininos, revela-se como mais um elemento de desequilíbrio, uma vez que a pouca naturalidade transmitida pelo ator ressalta constantemente o fato de estarmos diante de um homem travestido, e esse ícone ser, ao menos em nossa cultura, eminentemente bufônico, carnavalescamente subversivo.

Quase carnavalesco é também o ritmo que marca os diálogos do espetáculo, com as falas dos atores sucedendo-se freneticamente, em uma intensidade muito alta que, com poucas exceções, não se encaixa no ambiente intimista escolhido para a encenação. É um estilo de teatro muito visto em Belém: a energia pela energia, o ritmo pelo ritmo, como se qualquer interrupção maior fosse um problema. É um mau trato com os atores, que reproduzem a paranoia, e um preconceito com a plateia, vista como incapaz de acompanhar as nuances de uma história. Para uma trama como a de A outra irmã, em que a grande quantidade de informação é necessária para o entendimento, o problema é ainda maior: sem tempo para respirar, fica difícil assimilar completamente a relação e as motivações entre os personagens, e a solução final é mais aceita do que apreciada. É mais uma lição dada pelas grandes obras de mistério que passa em branco: a de que o silêncio, os sussurros, as ausências e as entrelinhas são tão importantes quanto as palavras que se diz. Existirá outra forma de fazer teatro?

Quem calou os tambores?

Há alguns meses, participei de uma mesa-redonda com representantes de povos indígenas. Um deles narrou com energia a ocasião em que um jovem autoproclamou-se indígena para ter acesso a vagas reservadas de um curso universitário, mas não foi reconhecido por nenhum dos povos ao qual poderia pertencer, o que, coerente e fatalmente, impediu sua entrada na faculdade. Essa consistência que saltou a meus olhos diante do movimento indígena foi a mesma da qual senti falta assistindo a Deixa-me ser tambor, espetáculo assinado por um coletivo de artistas negros paraenses.

A potência revolucionária palpável que os índios vem conquistando certamente tem muitos exemplos no movimento negro, mas não parece ser neles que se inspira o espetáculo. Ele parece indeciso: mostra, corretamente, que o racismo tem raízes sociais profundas no escravagismo e na dominação de classe, mas ao mesmo tempo tenta nos convencer de que “ser negro é um estado de espírito”, o que relativiza a complexidade do ser e do estar do negro na sociedade e acorrenta o discurso da obra a um plano subjetivo, que pode servir para fortalecer o sentido de pertencimento do indivíduo ao grupo, mas decididamente não é um bom argumento para o debate público.

Deixa-me ser tambor opta o tempo todo por se dirigir diretamente à plateia, questionando seus posicionamentos, tentando convencê-la de que também é uma roda da engrenagem social preconceituosa. É uma escolha estética vista com frequência, mas que parece não ter encontrado seu lugar no teatro paraense, pois quase sempre redunda em um moralismo estéril. Aqui não é diferente; argumentos como os supracitados, somados à timidez dos corpos e das vozes do elenco mesmo nas cenas que deveriam impressionar com a violência e a desumanidade, tornam a peça um panfleto cansativo, pouco persuasivo.

O espetáculo é construído por meio de quadros cênicos breves e desconexos, por vezes com saltos temporais e espaciais vertiginosos, que saltam de um ponto de comércio de escravos no Brasil colonial a um consultório médico nos dias atuais. De fato, os problemas enfrentados por negros nesses dois contextos mais mudaram de natureza do que diminuíram, e é relevante que o espetáculo queira dizer isso. Porém, certamente ambos os contextos têm mais complexidade do que a peça tenta mostrar. Os indivíduos de pele branca são representados como reprodutores de uma vilania quase esquizofrênica, em que todos os comportamentos racistas se sucedem uns aos outros; é um estereótipo que não tem eco em situações reais de discriminação, tanto da parte de quem agride quanto da parte agredida. Com isso, tudo que o espetáculo consegue fazer é reproduzir o discurso do movimento social interseccional pós-moderno, que se desocupa dos epicentros tectônicos de violência social para investir toda sua energia em uma festa identitária acrítica, tão barulhenta quanto improdutiva, que cria inimigos a priori e, por não compreendê-los, alimenta-os, contribuindo para a manutenção, e não para o fim, do preconceito.

Talvez a equipe da ACena não tenha percebido tudo que poderia representar, o gatilho que poderia ativar em direção ao sistema racista, quando ocupa o palco de um teatro experimental ligado a uma universidade, que advoga para si um papel democrático e tolerante, mas que não se furta à repetição das desigualdades que geram o sistema acadêmico. Deixa-me ser tambor é um grito de resistência, enunciado explicitamente ao longo da apresentação, e que tem toda a validade na conjuntura atual, em que a intolerância virou a linguagem padrão da interação política. Infelizmente para todos, aqui o grito errou o alvo; não conseguiu apontar os responsáveis pelo silenciamento do batuque.

As mãos de Vandiléia

Existe provavelmente um lugar teórico ainda pouco explorado no qual o teatro e o artesanato se encontram e se cruzam, tanto em seus aspectos técnicos quanto nos simbólicos. O material bruto mais ou menos rígido, que em um é o texto e no outro é o barro, coloca as duas artes em uma condição de dependência do porvir, de um processo, cuja construção é ao mesmo tempo potencializada e limitada pelas técnicas disponíveis. Ao mesmo tempo, teatro e artesanato tem representado, em especial na contemporaneidade, uma espécie de resistência de um certo modo de experienciar o mundo, que resgata o indivíduo, o afeto, a lentidão natural dos sentidos humanos, tornando-se uma espécie de alento simbólico diante do alastramento global da tecnologia, da industrialização em série, da informação em movimento e dos efeitos visuais delirantes. Daí haver um mérito especial na proposta que Vandiléia Foro levou a cabo em Verparacuri, resultado cênico de pesquisa com artesãos do distrito de Icoaraci, em Belém: a atriz investiga sentidos teatrais em um objeto potente, e também inusitado, que não corre o risco de repetir um discurso já dado de antemão pela mídia.

Vandiléia e a equipe que a acompanha no Casarão do Boneco, fazendo jus à sua condição de bons entendedores de mãos, tiveram sucesso na empreitada. Verparacuri é uma obra sensível, em que a presença vibrante da atriz em cena seduz o olhar e as estratégias de encenação são finamente elaboradas. O grande tecido que envolve a atuante no começo da peça, como uma massa rústica batida por alguma entidade invisível, enquanto o som abafado de vozes caboclas preenche o lugar, dá um caráter ritualístico à cena: se, nas narrativas de origem como as cristãs, o homem é feito do barro, a atividade do artesão de fazer objetos do barro é um retorno ao princípio da vida, uma dívida de gratidão mística com os deuses.

O ritual logo dá lugar a uma grande brincadeira infantil, em que imagens de objetos variados feitos por artesãos do Paracuri são projetadas nas paredes e no teto da sala do Casarão, e Vandiléia corre atrás deles como criança perseguindo um papagaio que cai, enunciando os nomes e as histórias dos autores de cada peça, recolhidas durante a pesquisa. O uso do projetor multimídia poderia se chocar com o discurso de resistência que ecoa na temática, mas não é o que acontece: a conjunção das imagens com a narrativa feita pela atriz abre uma brecha na superficialidade do olhar turístico que nos acostumamos a lançar sobre as peças de artesanato, revelando um sujeito que elaborou as peças, e para o qual estas representam não apenas uma atividade profissional, mas um elemento cultural indissociável de toda a episteme e do modo de ser no mundo daquela comunidade.

Verparacuri, dessa forma, é o avesso da vitrine; é o ato barthesiano de recobrir o artesanato com o mistério que lhe é de direito; é uma oportunidade para o público de olhar com mais atenção para esse fenômeno, e é, talvez, uma reação implícita ao discurso burocrático de “resgate” do patrimônio imaterial, que quase sempre recai em um messianismo torpe, esquecendo-se da essência. A equipe do Casarão do Boneco novamente acerta a mão.

Registro e agradeço aqui a recepção cordial do Tiago de Pinho e sua companhia a meu último texto, sobre o espetáculo O cortiço.

Saindo do cortiço (e da bolha)

O cortiço, montagem do Studio de Artes Tiago de Pinho, é uma obra capaz de abrir uma incômoda lacuna na percepção de quem deseja no teatro um pacto para exploração das contradições e da profundidade da alma humana, e não um espaço de reprodução de padrões impostos pela mídia de massa, que facilitam ao máximo as leituras para minimizar o impacto duradouro que a arte tem em potencial. Isso porque a adaptação teatral do romance de Aluísio Azevedo não parece se adequar a nenhum molde de princípios com que se tente interpretá-la. Fui ontem ao Margarida Schivazappa na expectativa de assistir uma peça rasteiramente comercial, em que atores iniciantes fossem usados como instrumentos vazios de repetição do senso comum, maquiado por um derrame gratuito de técnica que tornasse a cena atrativa a olhos afeiçoados ao imediatismo. Mas mesmo assim fui; e eis que, ainda que uma parte do Cortiço seja isso mesmo, e da forma mais deslavada possível, outra parte é uma obra atenciosa ao jogo, com quadros de humor original, enredos desenvolvidos com compromisso, atores com técnica apurada a serviço do mergulho dramático em seus personagens. Dentre as poucas certezas com que saí do teatro, estava certamente a de ter sido provocado para fora da bolha de minhas próprias convicções artísticas. Sem abandoná-las, mas pensando nas possibilidades e nos limites da coexistência delas com outras.

A presença de Bertoleza, que é marcante do início e do final do espetáculo, é um bom primeiro exemplo dessa dubiedade. A simplicidade da luz que a ilumina em ambas as aparições, o ritmo lento da sua ação, tudo é uma sutil e sensível provocação para um olhar cuidadoso do espectador, que, mais do que uma escrava estereotipada, vê uma mulher com uma história, um discurso e um conflito interno complexos. Da mesma forma leio a semelhança proposital entre o início da primeira cena, que abre a peça, e da última cena da escrava, depois que a maior parte dos moradores do cortiço já encontrou seu fim; a repetição da entrada da atriz rumo ao foco de luz, a executar tarefas domésticas com uma energia contida, é uma forma inteligente de mostrar que, no universo naturalista da peça, nada de fato muda; todos os dramas pessoais são resolvidos da forma que se divisava desde o início pela conjunção de horrores presentes no cortiço, e todas as lições mostradas e aprendidas pelos personagens são vãs. Mas é Bertoleza também quem ilustra a fragilidade de certas opções do espetáculo; por que a escrava precisa, por exemplo, simular a incorporação de uma entidade durante a primeira cena? Além de nada acrescentar ao discurso da encenação, essa e outras ações rendem a personagem justamente ao estereótipo que o cuidado da construção da cena vinha tentando evitar, e é o que faz o público reagir com indiferença, ou mesmo riso, quando ela encontra seu trágico desfecho. Vejo uma consequência semelhante na coreografia que serve de intermédio ao espetáculo, que representa o sofrimento dos escravos e sua luta pela libertação. O apuro técnico dos bailarinos não é suficiente para que a dança encontre coerência no discurso do espetáculo, ficando relegada a uma alegoria, uma forma já usada muitas vezes para contar a mesma história, cujo discurso político tem impacto imediato, porém efêmero.

Outros momentos da peça me lançaram da mesma forma a essa mistura de sensações. A primeira cena situada no cortiço, baseada em um longo diálogo entre as lavadeiras, as prostitutas e outros moradores, mostra um jogo cênico preciso e várias formas cômicas originais e divertidas, presentes não só no diálogo, mas também nos corpos dos atores e nas ações executadas; mas essa mesma cena também repete estereótipos e requenta piadas de outros contextos, o que naturalmente arranca risos, mas atrofia a admiração. Por que, para citar outro exemplo, acontecer uma festa de samba no cortiço, senão para ilustrar algum subtexto superficial sobre o “jeito” brasileiro, sobre a persistência da alegria em meio ao caos? Em suma, a encenação do Cortiço parece querer caminhar do início ao fim para uma potência da simplicidade, do detalhe e do jogo, mas a grandiloquência e a reprodução, que pressionam por todos os lados, acabam por dominar o palco e não permitir que essa proposta se desenvolva.

Outros contrastes evidentes entre as caracterizações dos moradores do Cortiço também ajudam a ilustrar essas contradições. Enquanto alguns têm destaque meramente formal, com uma extensa participação que não se traduz em conteúdo dramático, que não explora camadas humanas potenciais, outros queimam com uma chama mista de força e cuidado tão intensa que remetem aos grandes personagens do teatro. Rita Baiana é o melhor exemplo do primeiro tipo: todas as primeiras aparições da personagem são para reforçar sua sensualidade e sua conduta de mulher fatal, para logo depois, no momento da morte de Firmo, irromper sem mais nem menos em um arroubo emocional que soa gratuito. Albino e Piedade, por outro lado, são exemplos de personagens que recebem destaque não apenas formal, mas também de conteúdo. Suas histórias são contadas com delicadeza, sem se restringirem a excessos cômicos ou melodramáticos, e seus medos, seus traumas e os motivos de fundo de seus comportamentos são revelados aos poucos, por meio de um texto de rara qualidade, no caso de Albino, na cena em que conquista o desejo de Bruno, ou de um cruzamento primoroso entre ação e música, no caso de Piedade, que cede ao desvario do álcool e do sexo ao som de “Explode Coração” de Gonzaguinha. Talvez por isso mesmo, sejam esses os personagens que recebem de seus intérpretes Bruce Larrat e Isabela Arouck o investimento visivelmente mais orgânico, bonito e verdadeiro entre o enorme elenco do espetáculo.

Tiago de Pinho e seus atores parecem, portanto, ser capazes de ir com muita propriedade de um extremo a outro do contínuo entre as falsas pompas da arte comercial melodramática e as verdades misteriosas da arte que está sempre a se redescobrir. Fica a pergunta: o que estará montando essa galera daqui a uns anos? Podem se render ao blockbuster teatral, e virar mais alguns entre tantos outros artistas de mesmices (talvez só com melhor técnica), o que sem dúvida vai continuar lotando teatros, mas sem revolucionar nada, sendo lembrado por poucos. Podem também investir nas novas formas de dizer e fazer cujo caminho demonstram conhecer, e investigar como aliá-las ao apelo comercial que uma boa produção pede, verificando os impactos na plateia, em suma, abrindo-se para o inaudito, o surpreendente, o arriscado. Podem ainda, quem sabe, manter esses princípios ecléticos em todas as produções, tendendo ora a um, ora a outro extremo do contínuo, o que vai caracterizar uma linguagem sem dúvida original, mas cujo prazo de validade talvez não seja tão longo. Não sei o que escolherão. Mas, diferente de outras provocações que já fiz neste blog, que perambulavam entre o capcioso e o retórico, estas são projeções sinceras, de um espectador empolgado que pretende acompanhar os próximos trabalhos do Studio e de seus alunos. Porque o evoé não pode se restringir à nossa bolha.